ESTRANHO NO PARAÍSO
Sem-teto de 68 anos foi varrido de área rica de São Paulo
O morador de rua que irritou um bairro e acabou no Pinel
Marlene Bergamo/Folha Imagem![]() | Manoel Menezes da Silva, que foi retirado da praça Pereira Coutinho, na Vila Nova Conceição, e levado ao Hospital Psiquiátrico Pinel |
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
MARLENE BERGAMO
REPÓRTER-FOTOGRÁFICA
Foram necessárias dez incursões de guardas civis metropolitanos, assistentes sociais e até a limpeza urbana para retirar Manoel Menezes da Silva, 68 anos, 1,62 metro, 60 quilos, da praça Pereira Coutinho, no coração da Vila Nova Conceição. Morador de rua, há pelo menos 20 anos ele transita pelas ruas do bairro. Transitava.
A praça Pereira Coutinho guarda as jóias imobiliárias mais caras de São Paulo. É lá que fica o edifício Château Margaux, ao lado do Château Lafite, com apartamentos de em até R$ 15 milhões. É na praça que ficam os prédios campeões paulistanos de preço por metro quadrado -R$ 7 mil. Há condomínios de R$ 14 mil.
Manoel Menezes ocupava, na praça diante dos edifícios, um quadrado de 1,5 metro de lado, entre um poste e duas caçambas de reciclagem de lixo, defronte à rua Domingos Fernandes.
O oásis que ele invadiu está a três quarteirões do parque Ibirapuera, dois da boutique Daslu, 2,5 quarteirões da casa do atual secretário do Desenvolvimento Social de São Paulo, Antonio Floriano Pesaro, 35. Foi da pasta de Pesaro que se emitiram as ordens para aquilo que os assistentes sociais chamam de "institucionalização" de Manoel Menezes. Em maio deste ano, o cerco se fechou.
No dia 3, o homem foi levado para o Albergue Viaduto Pedroso. Chegou às 22h30. Alimentado e banhado, sumiu às 23h30, enquanto se discutia para onde o encaminhariam. No dia seguinte, estava na praça novamente.
No dia 9, a equipe de assistência social voltou. O sem-teto começou a retirar suas coisas da praça. De repente, escapuliu correndo. No encalço dele saiu uma técnica da secretaria. O fôlego do sexagenário foi maior e ela o perdeu.
O jornaleiro da praça ficou incumbido de ligar, se o sem-teto voltasse, para a assistente social Elizabeth Maria Valletta. Manoel Menezes foi rendido dia 10.
Levado ao Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental, da Santa Casa de Misericórdia, diagnosticaram-no como "demente" e o encaminharam ao Hospital Psiquiátrico Pinel, de Pirituba, sem previsão de receber alta.
Roupa nova
A Vila Nova Conceição tem uma espécie de intimidade com o morador de rua. Andrea Kurbhi, uma das proprietárias da grife Spezzato ("que veste as lulus mais descoladas do Brasil", diz o site da empresa), sempre cruzava com Manoel Menezes quando se sentava na lanchonete Bread & Co., depois de levar os filhos para a escola, nas imediações.
As pessoas na lanchonete tapavam o nariz acintosamente assim que o morador de rua se aproximava. Andrea decidiu ajudar: chamou o motorista e o incumbiu de dar banho e providenciar um barbeiro e novas roupas. Repaginado, o morador de rua seria devolvido para sua cidade natal, Piratininga, 349 km de São Paulo.
O barbeiro Pedro Lainer, 53, 30 anos de Vila Nova Conceição, acertou o visual do morador de rua. "Quando ele foi embora, tive de usar bom ar para dissipar o mau cheiro. Mas ele ficou com uma aparência ótima", lembra.
Operação concluída, só faltava a viagem para o interior. Ele não foi. Uma semana depois, estava no seu miniendereço na praça.
"Já não era sem tempo. Tinham de tirar logo o homem daqui", disse o proprietário de um estabelecimento comercial da praça, ao saber da internação. "Ele era uma ameaça à saúde das crianças. A imundície, o mau cheiro, podiam contaminar as crianças que brincam no playground da praça". Uma cliente atalhou: "Era assustador. Envolto em plásticos, o mendigo exalava um cheiro concentrado de urina. Alguma coisa tinha de ser feita."
A Folha encontrou Manoel Menezes no Pinel de Pirituba. Limpo, barba feita, cabelos raspados, ele contou que nasceu em Piratininga, mas veio para São Paulo com 15 anos. Foi alfaiate até 1981, depois empregou-se em uma padaria na rua Afonso Brás, vizinha da praça. Era quem alimentava com lenha o forno para o pão. Ex-crente, hoje, define-se como "esoterista". Foi casado, teve três filhos. A mulher o abandonou. Sabe ler e escrever. Fuma. Não bebe. "De vez em quando, tomo um copinho de querosene com café. Para ir para o esquecimento, sabe. Às vezes, é muito duro lembrar." Na despedida, pediu para não ser esquecido no Pinel.
Galos barulhentos
Elisario da Silva, 50, recepcionista de um salão de cabeleireiros, via semrpe o morador da praça: "Ele chegava na lotérica antes de abrir. Por baixo da porta de ferro, enfiava dinheiro suficiente para comprar um bilhete da federal ou da mega-sena. Depois, voltava para pegar o comprovante da aposta." "Não vai me dizer que ele ganhou na loteria", arrisca.
A forma estranha de comprar os bilhetes tinha uma razão. O segurança da lotérica proibira o sem-teto de entrar no estabelecimento. "O apelido dele - "cheiroso" - já diz tudo, sacou?"
O segurança e o recepcionista acham que o idoso incomodava muita gente e que, por isso, foi internado. "Esses poderosos implicam com tudo. Os taxistas da praça criavam um galo. Pois veja só: os moradores da praça mandaram o galo sumir. Não suportaram o barulho da ave", lembra um motorista com ponto no local.
Os ouvidos dos moradores do Château Margaux são bem protegidos. O encanamento do prédio têm isolamento acústico, para que a descarga na privada de um apartamento não seja nem em sonhos percebida pelo vizinho.
"Limpo e perfumado"
A jornalista Maria Lúcia Carvalho de Donato, 47, passeia com o labrador Mike na praça. De manhã e à tardinha. "Eu via o seu Manoel todos os dias. Sempre educado, sempre quieto. Cheirava mal, mas pode ser limpo e perfumado quem more na rua?"
O recepcionista do salão de beleza emenda: "Nunca vi o seu Manoel em uma bagunça, gritando, falando alto. Ao contrário, várias vezes, pela manhã, encontrei-o lendo a Bíblia." O vendedor ambulante de sorvetes da Kibon diz a mesma coisa e acrescenta a informação: "Ele gostava de coisa boa, sabe. Só tomava Chicabon, que ele mesmo comprava." O jornaleiro reforça: "Ele não queria saber de confusão. Como sabia que eu não o queria na banca por causa do cheiro, aproximava-se com o dinheiro para comprar cigarros e eu já levava um maço para ele. Ele sempre pagou pelos cigarros."
Os médicos envolvidos no tratamento do morador da praça dizem que só podem manifestar-se a respeito do caso para parentes do interno ou para o próprio. Como Manoel de Menezes não tem parentes localizados e é tido por demente, fecha-se o círculo: ele não sabe por que está internado, nem quanto tempo assim permanecerá, nem o tratamento.
A nova vida, longe da praça e agora recluso, Manoel Menezes, negro, inaugurou exatamente numa sexta-feira, dia 13 último. Era o dia da Abolição.